Na temporada 2022/2023, o Napoli lançou modelos de camisas para todos os gostos. E se alguém tentou comprar todos, certamente gastou um dinheiro considerável – muito mais do que faria 10 ou 20 anos antes.
Foram pelo menos 11 modelos na temporada: além da camisa titular, da camisa reserva e da terceira camisa (tanto em versões locais quanto para competições europeias), o time colocou à venda modelos especiais de Halloween, de Natal e de Dia dos Namorados. Ah, e houve também duas versões de camisas de goleiros.
E quando o torcedor realmente quer gastar dinheiro, ainda pode comprar camisa de treino, a camisa pré-jogo (hein?), o agasalho e tudo que clubes e fabricantes disponibilizam. Há cachecóis para clubes que jogam em cidades tropicais. Há bonés, camisetas comemorativas, linha de passeio. Uma dinheirama.
Não há dúvidas de que o mercado de camisas de futebol vive uma época nunca vista antes. Torcedores e colecionadores de todo o mundo têm acesso fácil a uma miríade de modelos raros, camisas fiéis de Copas do Mundo antigas e peças detalhadamente personalizadas. Marcas que nunca tiveram relação com o futebol perceberam o potencial do mercado e buscaram um espaço.
Mas será que esse nicho está a caminho da saturação? E, se sim, por que isso está acontecendo?
A resposta para a primeira pergunta provavelmente é sim. E, para a segunda, a explicação é que o mercado de camisas de futebol vive um momento comum a muitos outros mercados.
Feito para não durar
Você deve ter passado por experiências ruins com consumidor nos últimos tempos. Aquele produto que durou pouco, aquela blusa que descostura, aquele eletrônico que virou um problema… E, no mercado de camisas de futebol, aquela camisa de futebol que estragou depois de menos de um ano, que perdeu alguma estampa depois de ser lavada algumas vezes.
Reparou que suas camisas antigamente duravam bem mais? Isso tem explicação: é uma aplicação do conceito de obsolescência programada ao segmento. E aí é preciso entender de onde vem o conceito.
Em fevereiro de 2023, o site Vox.com publicou um vídeo para responder a uma pergunta: “Por que é que tudo que você compra agora é pior?”. Não é só uma impressão: há uma explicação.
Se você não quer assistir ao vídeo, segue uma breve explicação.
Para oferecer um produto, uma empresa se baseia em três fatores: funcionalidade (ele funciona?), aparência (ele é bonito?) e, digamos, fabricabilidade (ele é fácil de fazer?). Se essa conta fecha de maneira equilibrada, o produto é viável para quem compra e para quem vende.
Nos últimos anos, porém, a conta desequilibrou e a fabricabilidade ganhou terreno. Assim, a preferência é por itens que sejam facilmente produzidos, mas não necessariamente funcionais e bonitos. No segmento de roupas, o público migrou de alfaiates para uma grande oferta de lojas, e delas para inúmeros e-commerces.
Na década de 1930, o publicitário norte-americano Earnest Elmo Calkins já previa o fenômeno que chamou de “engenharia de consumo”, pedindo inclusive incentivos públicos para que os consumidores adquirissem novos produtos a cada onda de lançamentos. Ou seja: a cada coleção, as marcas mudam os modelos, e o consumidor adquire – não porque precisa, mas porque há algo novo.
Assim, nós somos cada vez mais estimulados a comprar mais. E se compramos mais, as marcas oferecem mais produtos. E para oferecer mais produtos, as marcas precisam fabricar mais. E para fabricar mais, a qualidade cai. O resultado é o que Vox classifica como um ciclo incrivelmente acelerado de demanda por produtos de baixo custo.
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Parece um fenômeno recente, mas não é. Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), entre 2000 e 2014, a produção mundial de roupas simplesmente dobrou, enquanto o volume de compras no segmento durante o mesmo período aumentou 60%. Ao mesmo tempo, enquanto as peças duravam em média 15 anos antes disso, passaram a durar metade do tempo.
“Então, nós queremos comprar um monte de coisas logo, e como substituímos nossas coisas frequentemente, nós não queremos gastar muito dinheiro nisso – o que também tem um efeito”, explica Kim Mas, a produtora do Vox. “As pessoas não estão dispostas a pagar mais por algo que compraram há pouco tempo”, reforçou Izzie Ramirez, editora-assistente do veículo.
Para lidar com o ciclo de consumo, as empresas precisam contratar mais pessoas ou mudar o processo de fabricação dos produtos, o que pode encarecer o preço final e afugentar o consumidor. Como resposta, costumam adotar materiais de qualidade inferior. O objetivo é tentar manter o preço igual ou próximo ao que você pagava anos antes.
No meio das camisas de futebol, é onde entram, por exemplo, as alternativas aos bordados ou às estampas silkadas: os termocolantes, que costumam resistir menos ao tempo e estimulam a gente a comprar uma camisa nova cada vez que uma antiga estraga – afinal, não são feitas para durar. As fabricantes esportivas, no entanto, não se preocupam tanto em manter os preços estáveis com o passar dos anos, como você deve ter percebido.
Some-se a isso, com todo este cenário, o fato de que clubes e fabricantes não querem perder a oportunidade de ganhar dinheiro com o torcedor. Os modelos que passavam anos sem mudanças na década de 1960, por exemplo, começaram a exibir pequenas mudanças todos os anos. E os times ganharam terceiras camisas. E edições especiais, usadas em um jogo só para promover campanhas – muitas vezes louváveis, mas sempre com o intuito de movimentar dinheiro. Mais do que ter a camisa, a preocupação é que o torcedor compre a camisa.
Assim, o que se vê hoje é o ápice de um processo da relação de consumo entre torcedores, clubes e marcas, acelerada pela paixão. Clubes e marcas querem potencializar a venda de camisas, e as torcidas respondem comprando uma maior quantidade. Mais compras estimulam mais produção, e para evitar um encarecimento da produção, as fabricantes optam por menos qualidade.
O resultado é que você compra mais (e mais caro), mas compra pior e compra de novo.
Como evitar frustrações comprando camisas de futebol?
Diante de tudo isso, você não precisa deixar de comprar camisas de futebol se gostar. Mas precisa entender que aquele cenário em que você começou a curtir as camisas, lá nos anos 1990, já não existe mais.
A relação mudou, mas dá para ser feliz vestindo e colecionando camisa. E se você quer comprar, vestir e colecionar sem se frustrar, a gente deixa sete dicas aqui:
Compre a camisa do ano passado
Em consulta a um site especializado em venda de camisas de futeb
ol, a camisa titular 2024 de um grande clube brasileiro custava a injustificável bagatela de R$ 369,90. Já o modelo de 2023, que antes custava R$ 329,90, era vendido por R$ 179,90 (imagem ao lado). Ou seja: 54,5% do valor original da peça de 2023, ou 48,6% do preço da camisa de 2024.
Como explicar?
Poucos meses antes, o modelo de 2023 também era vendido pelo preço cheio – e os preços do site ainda conseguem ser melhores do que os anunciados pelo site oficial do clube. Então, por que gastar 23% de um salário mínimo em uma camisa que vai se desvalorizar de novo na primeira oportunidade? Aliás, fora o fetichismo, o que justifica um corte tão grande no preço logo após o lançamento de um novo modelo?
Sua camisa nova logo vai ser a velha. Então, compre logo a camisa velha, que de repente é mais bonita.
Atenção aos termocolantes
Os modelos mais recentes – e mais caros – de camisas de futebol têm apostado em estampas termocolantes. E isso quase nunca é bom.
Sabe aquele patrocinador “de plástico” que racha e descola depois de algumas lavagens? Aquele nome que cai, aquele número que se solta? São grandes as chances de serem estampas termocolantes, um material feito para ser aplicado com uma aparelhagem especial que exige pressão e altas temperaturas.
É o tipo de material que exige um cuidado que nem sempre o colecionador consegue ter, como lavagem à mão. E isso para não citar casos em que a estampa racha ou gruda simplesmente por estar dobrada ou em contato com estampa semelhante à de outra camisa.
Vale a pena restaurar? Talvez…
Com tanto problema de patrocinador saindo da camisa depois de algumas lavagens, o colecionador passou a conviver com um nicho que ganhou força: a restauração feita em estamparias especializadas.
As lojas contam com material e equipamento de alto nível e fazem bons serviços: limpam os patrocínios estragados, aplicam novas estampas termocolantes e deixam as camisas como novas.
Mas… Vale a pena?
No fim, você vai ter uma camisa como nova. Mas e quando você for lavar de novo depois de usar? E se estragar de novo? No fim, você vai ter uma camisa nova sem segurança de voltar a usar.
Aposte em material que dura
Enquanto as grandes marcas apostam nos termocolantes (e inflacionam os preços), os materiais que ficam são outros.
As estampas sublimadas podem não cair no gosto de todo mundo, mas são baratas e garantem resultados que permanecem intactos por décadas. Os bordados, por outro lado, não ficam tão em conta, mas ficam bonitos e também se garantem por muito tempo.
Até mesmo o esquecido silk screen vale a pena. A técnica não é a prioridade das fabricantes hoje em dia, mas você pode ver que o desgaste em camisas antigas é bem menor do que o estrago nas camisas termocolantes.
Tailandesas quase sempre compensam, mas…
Se as camisas são caras e a qualidade tem deixado a desejar, uma alternativa adotada por muita gente tem sido a compra das famosas camisas tailandesas.
A alternativa costuma compensar. Os prazos não são bons, já que as camisas podem demorar mais de 30 dias para chegar ao destinatário. Em compensação, é fácil encontrar camisas de R$ 300 por menos de R$ 100 – e mesmo com novos impostos, os valores tendem a compensar.
A grande ressalva diz respeito à originalidade das camisas. São originais? São piratas? Bom, basta ver que camisas oficiais compradas no exterior trazem nas etiquetas as informações de que são fabricadas em países como Tailândia, Bangladesh e Paquistão.
É claro que o comprador corre o risco de receber uma falsificação das piores – e todo colecionador que compra dos marketplaces tem uma história dessas. Como é provável que as camisas sejam vendidas de outlets asiáticos com menos intermediários, o risco costuma compensar.
Em um cenário ideal, você comprará uma camisa com a mesma qualidade (ou falta de) do produto à venda em lojas. A diferença é que pagou menos e demorou mais para receber. Não é o ideal, mas melhora.
Compre de colecionadores
Uma alternativa com boa margem de segurança para quem quer camisas de coleção é comprar de colecionadores.
Nem sempre é fácil encontrar aquele modelo específico que você está procurando. Mas a oferta pode te surpreender, e alguém pode aparecer oferecendo uma camisa que você não imaginava que gostaria de ter.
Aí, tem de tudo: camisa recente, camisa antiga, camisa ainda na etiqueta, camisa usada, camisa de jogo, camisa de treino, camisa com nome e número, camisa com patch, agasalho, camisa danificada…Às vezes, só não tem o que você está procurando.
Como toda negociação, comprar camisa usada oferece riscos. Procure comprar de vendedores reconhecidos por outras pessoas, e não pague preços abusivos. Se for possível comprar pessoalmente e em locais públicos, melhor ainda.
Compre para ter, e não para comprar
Não existe competição de consumo. No mundo do futebol, você não é mais torcedor só porque comprou a terceira camisa que o seu clube acabou de lançar.
Por isso, vale a pena ter autocontrole e ficar longe de microtendências. Afinal, aquela camisa usada em um jogo só logo deixará de fazer sentido, e você provavelmente terá investido uma bela grana em um modelo que não usará muito. Logo vai querer outra.
Não é difícil, por exemplo, encontrar colecionadores que têm camisas que nunca usaram, inclusive com etiqueta.
Se for comprar, compre com a intenção de ter e usar. Por isso, prefira materiais que você sabe que irão durar – se possível, a preços acessíveis.
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